O Brasil descobriu a Índia. Na novela, no cinema, na moda, multiplicam-se as evidências de que o Brasil, assim como o resto do mundo, encantou-se com esse país que combina uma das mais antigas civilizações do planeta a uma das sete maiores economias do mundo. Na semana passada, o longa-metragem indiano Quem quer ser um milionário? ganhou oito estatuetas do Oscar. Rodado em Mumbai, maior metrópole do país, o filme teve um orçamento de US$ 18 milhões e a bilheteria mundial já atingiu US$ 100 milhões. Ele conta a história de um garoto que sai da favela e torna-se um astro da televisão para poder casar-se com a moça que ama. É uma fábula do Terceiro Mundo com final feliz. O filme estreou na semana passada no Brasil, engrossando a onda indiana criada pela novela Caminho das Índias, da Rede Globo.
Assim como o filme, a novela tem no centro da trama o amor romântico. Desta vez, em torno de um triângulo: a filha de uma família tradicional hindu é prometida a um jovem da mesma casta de comerciantes. Mas ela vive um amor proibido por outro jovem, de uma casta inferior. Seu noivo também não está feliz com o arranjo. Em viagem ao Brasil, ele se apaixonou por uma jovem carioca, que não consegue compreender por que os dois não podem ficar juntos.
A novela e o filme apresentam aos brasileiros um mundo que eles desconhecem quase inteiramente, mas pelo qual demonstram grande interesse. A cultura espiritual indiana, que deu ao mundo o budismo, a ioga e o pacifismo de Mahatma Gandhi – para ficar em três exemplos –, tem sido consumida no Brasil com avidez. A atriz Juliana Paes, protagonista de Caminho das Índias, afirma que, depois de um mês de filmagens no país, tornou-se mais paciente e passou a praticar ioga. “Minha família é toda espírita, e um dos preceitos do espiritismo é a resignação, você aceitar a cruz que carrega”, diz ela. Há nesse sentimento um eco da tradição conformista do hinduísmo. Para a carioca Paula Saboya, é o sagrado da cultura da Índia que traz encantamento. “A religiosidade e o simbolismo presentes viram nossa mente pelo avesso porque dão sentido à vida, aos acontecimentos”, afirma. Paula tem 42 anos e passou seis meses na Índia estudando ioga.
Em 2000, Paula Ornelas, outra carioca, tinha 25 anos quando resolveu fazer uma viagem à Índia entre seu mestrado e seu doutorado em física experimental. Acompanhada de amigos, visitou um ashram, espécie de comunidade espiritual, de Sai Baba, um dos mais cultuados gurus indianos. “Eu era uma cientista cética, mas sempre fui extremamente curiosa”, diz Paula. “Minha vida se transformou completamente. Tudo o que eu via e ouvia dava sentido a minha existência”. A viagem de três semanas se transformou numa estada de dois meses. Ela largou a universidade, a bolsa de pesquisas e um namoro de cinco anos. Depois de várias viagens à Índia, Paula Ornelas chegou a se casar com um indiano com quem veio para o Brasil. Hoje, separada, ela é professora da filosofia vedanta, oriunda do hinduísmo. Para ela, essa cultura trouxe outro jeito de pensar e agir. “Sempre tento entender o outro, as diferenças. Sou mais tolerante e tenho mais capacidade de aceitação do que acontece comigo”, diz.
A religiosidade e a forma de entender o mundo dos indianos fascinam os brasileiros, mas não é só isso. “Somos nostálgicos de muitos valores que a cultura indiana reverencia: o respeito à vida, aos mais velhos, a sede de instrução, a força dos valores éticos e tantos outros”, afirma Glória Perez, autora de Caminho das Índias. Os indianos, assim como outros povos orientais, agem e pensam em grupo e têm a família como seu eixo principal. Pelos seus costumes, a família é responsável pelos casamentos e por pesquisar os antecedentes do futuro pretendente. O hábito é comum mesmo entre indianos e seus descendentes que vivem em países distantes. Para seguir a tradição, Karuna Daswani, relações-públicas, de 26 anos, filha de indianos e que nasceu no Brasil, pretende se casar com um indiano. “Não sei se me casaria com um brasileiro. Minha família por parte de pai é muito tradicional e não permitiria”. O entendimento dos costumes e da religião também pesa na decisão. Além de ser indiano, o futuro marido deve pertencer à mesma casta – no caso de Karuna, a sindhi. Cada casta tem hábitos e orações diferentes. “Se eu escolher um sindhi para me casar, meus avós podem pesquisar a família do futuro marido com mais facilidade. Se for de outra subcultura, as informações são mais fechadas, e o casamento às vezes nem é aceito”, diz.
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SUCESSO NAS ARTES
Rodado na Índia, o filme vencedor de sete Oscars Quem quer ser um milionário? (acima) retrata a miséria no país. Já a novela Caminho das Índias, que tem como protagonista a atriz Juliana Paes (à dir.), fala sobre os conflitos da sociedade indiana moderna. Depois das filmagens no país, Juliana diz ter adotado práticas indianas, como a ioga |
Na Índia, a maior parte dos casamentos é arranjada entre os familiares, mas os indianos que vivem no Brasil não gostam da forma como isso vem sendo mostrado na novela. Eles se irritam com os escorregões nas tradições, ressentem-se da forma como é apresentado o sistema de castas. Eles argumentam que a casta é determinada pela origem do indiano (ele morre e nasce com ela) e não pode ser confundida com classe social. O cônsul indiano em São Paulo, Jei Tendra Tripathi, ameniza a polêmica: “A novela não é um documentário, e sim uma ficção”. Ele afirma que o mais importante é que o Brasil conheça melhor a Índia, em qualquer forma que ela se apresente.

No Rio, a carioca Paula Ornelas dá aula de vedanta. Ela abandonou a carreira de física depois de conhecer a Índia
A Índia não é óbvia. O filme Quem quer ser um milionário?, que de certa forma explica o país, foi recebido com imensas reservas por indianos de vários matizes. O escritor Salman Rushdie – que ficou famoso ao criar personagens telepatas, anjos e deuses – criticou as “inconsistências” do roteiro. “O filme empilha impossibilidades sobre impossibilidades”, disse numa conferência em Atlanta, nos Estados Unidos. O diretor inglês Danny Boyle teria se baseado no longa brasileiro Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles. Boyle admitiu ter visto o filme várias vezes, mas negou a influência. Chegou a afirmar, para o jornal O Globo, que parou de ver o filme de Meirelles para não ser contagiado. Fantasioso ou não, o filme está criando uma visão externa sobre o país. A trilha sonora tem como destaque a canção “Jai Ho” (algo como “turbinado”, na tradução de híndi), que está sendo executada e cantada em todo o mundo. Na literatura, dois livros do espanhol Javier Moro pegaram carona nessa onda: O sári vermelho e Paixão Índia. Este último está na lista dos dez mais vendidos de ÉPOCA.
Apesar de a Índia e o Brasil terem aumentado o intercâmbio nas últimas décadas, ainda falta muito para o Brasil entender um aspecto central da cultura indiana, sua religiosidade. Das seis maiores religiões do país, a principal é o hinduísmo, que congrega 83% da população. Ele é seguido pelo islamismo, com cerca de 13%. Depois, em proporções menores, estão presentes o budismo, o siquismo e o janaísmo. O hinduísmo é tão antigo quanto à própria Índia e confunde-se com ela. Baseia-se nos Vedas, uma tradição oral transformada em textos em sânscrito. Dele derivaram inúmeros credos e práticas religiosas representadas pelos gurus, ou mestres, tão indianos quanto os elefantes e as roupas coloridas das mulheres. No Brasil, existem seguidores dos mestres Sai Baba, Shankara, Shiva Nanda e Daya Nanda. A meditação, uma prática que ganha cada vez mais adeptos no país, aparece em todas essas correntes. Ela ganhou o mundo depois que os Beatles viajaram para a Índia, em 1968, para se encontrar com o iogue Maharishi Mahesh, então seu principal difusor.
Glossário híndi |
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Namastê saudação que significa “o divino em mim saúda o divino em você” |
Tik he “tudo bem” |
Are baba “poxa”, “não diga” |
Baldi ou Papa pai |
Mami ou Mamadi mãe |
Djan querido, amado |
Tchalô “vamos!” |
Ulu pessoa estúpida, burra |
Aechá “oba”, “que bom” |
Foi depois desse famoso encontro entre o iogue e os músicos britânicos que os brasileiros começaram a desembarcar na Índia em busca de orientação espiritual. Esses pioneiros faziam parte do movimento hippie das décadas de 60 e 70. Nessa mesma época começaram a surgir no país as primeiras comunidades Hare Krishna, cujos integrantes ainda podem ser vistos nas ruas das grandes cidades com vestes laranja e cabeça raspada. Em 1974, no Rio de Janeiro, com a vinda do iogue Chinmaya Nanda, foi fundada a Associação Brasileira de Professores de Ioga. Mas essa prática, como quase tudo de estrangeiro que chega ao país, tomou um jeito nativo que não segue exatamente a formulação original. É a nossa famosa antropofagia cultural. Na Índia, a ioga não é uma prática isolada da religião e não se faz em academias, como se vê hoje no Brasil. Aqui, a ioga tornou-se uma forma de ginástica ritualizada, menos bruta e mais tranquila, que se ampara de leve nos preceitos de autoconhecimento e devoção dos indianos. Mesmo enxugada de muitos de seus valores religiosos, essa ioga brasileira ainda se beneficia dos conhecimentos físicos e mentais de uma prática de 3 mil anos, anterior ao budismo e ao cristianismo.
A rigor, todo o aspecto devocional do hinduísmo, com suas várias versões do deus Bhrama, não foi tão aceito entre os brasileiros como foi entre americanos e europeus. O estudioso de religiões e empresário indiano Rakesh Vaydinatha acredita que o brasileiro, por conta de sua natureza, apegou-se ao lado emocional do hinduísmo. Ele não quer discutir as questões filosóficas, mas realizar as práticas que a religião oferece, como a ioga e a meditação. Já o budismo, religião que tem seu berço na Índia e depois se espalhou por outros países do Oriente, ganhou força nas décadas de 80 e 90, com a figura do Dalai-Lama, o líder espiritual dos tibetanos. Os estudiosos acreditam que a ioga e o budismo são de fácil aceitação entre os ocidentais porque não brigam com outros preceitos religiosos, como os do cristianismo. “A ioga não é exclusivista e Jesus pode ter seu lugar. O budismo também não pede um Deus. Ele se baseia na observação da mente e na aceitação da fragilidade da natureza humana. O brasileiro gosta dessa abertura”, afirma Rakesh. Há mais de seis décadas, Mahatma Ghandi, o líder da não-violência que levou à Índia a independência dos britânicos, já dizia que a cultura ocidental deveria rever suas ideias, principalmente em relação à tolerância. “A lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua, já que nunca pensaremos todos da mesma maneira, já que nunca veremos senão uma parte da verdade e sob ângulos diversos”. Os brasileiros podem aprender com isso.
Fonte: Época - Kátia Mello e Martha Mendonça. Colaboraram Luís Antônio Giron e Danilo Soares