Psiu, silêncio...

Malas prontas, Rubens Cafuk parte em direção ao mar. Não só para ficar na praia. De máscara e nadadeiras, mais uma vez ele vai se encontrar com seu velho amigo, o silêncio. Sob o som das borbulhas da própria respiração, ele mergulha na quietude do oceano. É quando sua alma descansa, seu corpo relaxa. “Sem isso, não sobreviveria”, diz o comerciante paulista.“É um momento em que posso estar em paz comigo.” Pouco tempo atrás, Rubens percebeu que na maior parte do tempo ele era o que as pessoas queriam e fazia o que elas esperavam. E que a quietude lhe reservava a rara possibilidade de ser ele mesmo.

Grande sabedoria, a dele. E de muita gente que aprendeu que esse encontro com o silêncio é fundamental.Na verdade, antes de escrever esta reportagem, não tinha idéia de que tantas pessoas já descobriram a importância desses momentos de calma e planejam a vida para que eles aconteçam cada vez mais.


Pisando macio

A imagem das mulheres japonesas de quimono pisando delicadamente o chão com suas meias brancas encantava o arquiteto paulista Luis Matsushima, que viveu seis meses em Tóquio. “Gostava de vê-las porque podia perceber o som do silêncio nos seus passos”, diz ele.Nas casas tradicionais japonesas, a quietude evidencia os sons domésticos e da natureza em volta. “Assim como os espaços vazios nas pinturas japonesas são usados para ressaltar traços e volumes, dentro de casa, o silêncio contorna os sons como a água do mar rodeia ilhas, evidenciando sua forma e beleza”, diz Luis.

Quando as pessoas sentem sede de silêncio, o primeiro lugar que pensam em deixar mais tranqüilo é a própria casa. Muita gente no Brasil procura seguir o exemplo dos japoneses, transformando suas moradias em templos silenciosos, com tatames ou tapetes forrando o chão, poucos eletrodomésticos e sapatos do lado de fora da porta.“Cada vez mais tenho pedido para diminuir os ruídos internos das moradias”, diz o especialista em acústica Francisco Bemitz, que trabalha há 30 anos nessa área. Para isso, ele usa materiais especiais para forros e janelas com vidro duplo e até recomenda paredes mais grossas entre os ambientes.“Para haver conforto acústico, o ruído interno deve estar entre 40 a 50 de decibéis.” Isso é o equivalente a conversas em voz baixa, música baixa e sons acolchoados por cortinas e tapetes. Ele não recomenda, no entanto, transformar a casa numa tumba à prova de ruídos. “O silêncio completo pode surtir o efeito contrário e causar agitação. Passamos a ouvir os barulhos digestivos, o estalar dos ossos.Com o tempo, isso pode dar nos nervos.” Segundo Francisco, o ser humano precisa de uma gama variada de percepções. O silêncio torna-se bem- vindo justamente porque estamos continuamente imersos no barulho e necessitamos dele como uma outra qualidade de impressão.


Flores se abrindo

Quando Dolores Duran pediu o abandono de flores se abrindo e a paz de uma criança dormindo para enfeitar a noite de seu bem, estava se referindo ao presente em que o silêncio pode se transformar. Nesse momento de calma, no entanto, todos os outros sentidos podem se tornar abertos e presentes. Numa dessas tardes em que tudo pode acontecer, entrei numa loja num bairro chinês de São Francisco e fui convidada pela dona a experimentar algo muito diferente e especial – desde que soubesse me manter em silêncio. Ela me conduziu para um salão atrás da loja, onde poucos fregueses estavam sentados em pequenas mesas com banquinhos de madeira entalhados em forma de dragão. Colocou uma bandeja na minha frente e despejou água fervente numa tigela de cristal até transbordar. A água escorreu para a bandeja, sinal de grande prosperidade e abundância. Com gestos calculados, ela colocou delicadamente uma bolinha marrom no meio da água. Sorriu e foi embora. Em alguns segundos, vi o botão escuro se abrir e se transformar numa flor de jasmim do tamanho da palma de uma mão, exalando um perfume inebriante. Era o chá mais bonito e cheiroso que já tinha visto ou sentido na vida.Mas foi a exigência do silêncio que tornou esse momento mais especial ainda.

Um amigo meu diz que durante o dia procura “tirar o som” da vida. Isto é, olha para o que está acontecendo procurando abstrair o barulho, como num filme sem trilha sonora. Ele garante que a vida ganha outro sabor e que, a partir disso, passa a olhar para coisas que jamais olharia: o movimento das folhas das árvores, a textura dos gravetos no chão.Outro amigo, jornalista, que trabalha a semana inteira com as palavras, no sábado de manhã vai para uma praça, senta num banco, e fica ali parado, por meia hora. Procura tirar as palavras do pensamento, olha para as coisas sem rotulá-las e aquieta o falatório interno. “Me dou o luxo de vegetar”, resume laconicamente. Diz ele que sai dali renovado.


No fundo da alma

A tradição mística de todas as religiões convida à calma e ao recolhimento. Muito foi dito sobre esse tema. “O silêncio pode ajudar para que as emoções se acalmem”, diz o monge alemão Anselm Grün, que em seus livros defendeu a importância dos momentos silenciosos na vida. Grün faz parte da tradição dos monges hesicastas (silenciosos) que, mais do que tudo, honram o silêncio da alma. Também o I Ching, no seu hexagrama 52, A Quietude, aconselha recolhimento para acalmar “os movimentos do coração”, isto é, os pensamentos.

Outro grande mestre, o monge alemão Eckart, do século 13, também falou sobre isso, no magnífico texto “O Silêncio da Criação”, encontrado no Livro da Divina Consolação. Eckart se pergunta onde está Deus em nós, e responde que “deve estar no que a alma tem de mais puro, de mais nobre e de mais delicado”. Para Mestre Eckart, o silêncio do fundo da alma é o único lugar onde o Criador pode se manifestar plenamente.

Músicos também têm uma grande relação com o silêncio. Artur Andrés, flautista e compositor do grupo mineiro Uakti, diz que para tocar bem é preciso procurar o silêncio interno de onde surge a música. Para ele, a música é um conjunto que combina massas sonoras e silêncios.Artur lembra que o compositor americano John Cage,músico de vanguarda do século passado, compôs uma peça em que se sentava ao piano, permanecia ali três minutos quieto, fechava o teclado e saía. Com esse gesto, convidava as pessoas a ouvir o silêncio que está sempre presente.
Silêncio constrangedor

Na nossa cultura, o silêncio parece desnecessário. Lembro do ator japonês Yoshi Oida muito aflito depois de uma semana no Brasil. Sem ter coragem de recusar convites dos seus anfitriões, foi de festa em festa, de papo em papo, até quase cair exausto. Quando fui entrevistá-lo e perguntei sobre os brasileiros, ele me fitou com um olhar desesperado e perguntou:“Meu Deus, quando é que vocês inspiram?”Inspirar, voltar-se para dentro, ficar em silêncio não é mesmo muito nosso forte.Aqui, o silêncio é quase sempre constrangedor. Naquele livro que todo mundo jura que nunca leu, mas que é campeão de vendas no Brasil (Homens São de Marte,Mulheres São de Vênus), de John Gray, o autor fala da necessidade masculina de passar um tempo quieto.“Ele não está emburrado, desconfiado ou pensando em outra mulher”, diz Gray. O sujeito só quer ficar em silêncio. Ele precisa disso. Eu acrescentaria que as mulheres também. Silêncio é bom, deve ser cultivado e faz falta.

PARA SABER MAIS

LIVROS
• As Exigências do Silêncio, Anselm Grün, Vozes
• O Livro da Divina Consolação, Mestre Eckart, Editora Universitária São Francisco
• Respirar o Instante, William Segal, Horus

CDS
• Música dos Sayyds e dos Derviches, (piano e flauta) – Gurdjieff/De Hartmana – com Regina Amaral, Artur Andrés e Mauro Rodrigues.


Fonte: Vida Simples - Liane Alves

 


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