Yoga e Moral

Fala-se com freqüência que yamas e niyamas não são preceitos éticos e morais, embora pareçam ser. Nos meus primeiros dias como estudante de yoga tive dificuldades para compreender isso. Quando lemos algo sobre ahimsa a maioria de nós interpreta o texto como se estivesse diante de uma decálogo e tende, pela natureza da mente ocidental, a interpretar tudo em termos de proibições e permissões, como se houvesse algo ou alguém realmente disposto a lhe impor fiscalização e punição. Logo, ahimsa é o equivalente oriental do «não matarás» judaico-cristão. Mesmo que a mente seja mais esclarecida e o sujeito recorre à etimologia e se dê o trabalho de analisar traduções e interpretações diferentes, ele chegará, com sorte, a algo como «não causar danos», sem o verbo no imperativo, o que é mais suave do que a regra judaico-cristã, mas continua sendo «algo a ser seguido». Seja como for, prossigamos. É claro que no yoga não faz sentido falar em regras. Apesar disso, minha maior dificuldade foi compreender por que raios eu deveria me dedicar a algo se isto não pudesse me tornar melhor -- e melhor nos leva, é claro, a discussões morais bastante complexas -- e como isto seria conseguido sem o estabelecimento de regras de conduta. Guruji havia mostrado a resposta a essa dúvida em várias de suas aulas: o comportamento moral -- isto é, a aparente obediência a regras -- não é a causa, mas a conseqüência de uma compreensão bastante profunda sobre a natureza das próprias ações. O sábio não mata e não rouba porque essas coisas são ruins, mas porque ele compreendeu a sua própria natureza e a natureza dessas ações e porque compreendeu também a forma como essas diversas naturezas se relacionam. O sábio não mata e não rouba porque sabe que isto seria o equivalente a interromper o fluxo de um rio ou fazer um tatu bola soletrar. A noção de melhor está ligada à noção de natureza, donde vem também a noção de naturalidade e espontaneidade. E com isso não apenas ahimsa torna-se um conceito cristalino, mas também todos os niyamas e os outros yamas. A realização de yamas e niyamas consiste em transformar-se naquilo que você realmente é, não em fazer aquilo que sua natureza não lhe permite fazer. É basicamente por isso que o suicídio é pecaminoso ou imoral: a natureza humana inclui manter-se vivo pelo tempo que isso for possível e exclui atirar-se pela janela de um prédio, embora as coisas possam ser diferentes disso às vezes. No limite, nota-se que não há motivos para que a prática de yamas e niyamas seja diferente das práticas ditas «superiores», como dhyana e samadhi, porque, afinal, elas tratam de uma única e mesma coisa. Yamas e niyamas, assim como dhyana e samadhi, significam ter consciência daquilo que você faz e daquilo que você é. * Se eu ainda tinha alguma dúvida sobre isso, ela se desfez enquanto lia «Tabu», de Alan Watts (cuja edição inglesa pode ser baixada aqui). Diz o sábio inglês (grifo meu):
(...) não pense o leitor que esta compreensão o transformará imediatamente num modelo de virtude. Ainda não encontrei um santo ou sábio que não tenha algumas fragilidades humanas, já que, enquanto nos manifestarmos na forma humana ou animal, teremos de comer à custa de outras vidas e de aceitar as limitações do nosso organismo particular, cujo fogo continuará ardendo e quando em perigo continuará segregando adrenalina. A moralidade que acompanha esta compreensão é, acima de tudo, o reconhecimento sincero de que você depende dos inimigos, subordinados, grupos alheios e, na realidade, de todas as outras formas de vida, sejam elas quais forem. Por mais envolvido que esteja em conflitos e jogos de competição da vida prática, nunca mais você poderá ter a ilusão de que o «outro ofensivo» está inteiramente errado e de que deveria ou poderia ser eliminado. Isto lhe dará a inestimável capacidade de controlar conflitos de maneira que não passem das medidas; de ter a disposição para chegar a um acordo e conseguir a adaptação; de jogar, sim, mas jogar serenamente. É a isto que se chama «honra entre ladrões», pois os indivíduos verdadeiramente perigosos são aqueles que não reconhecem que são ladrões -- os infelizes que representam o papel dos «bons sujeitos» com um fervor tão cego que se tornam inconscientes de qualquer dívida para com os «maus sujeitos» que sustentam seu status. Parafraseando o Evangelho, «Amai vossos competidores e orai por aqueles que regateiam com vossos preços». Nada teríamos nem seríamos sem eles.
Watts, Alan. Tabu - o que não o deixa saber quem você é? Trad. Fernando de Castro Ferreira e Olavo de Carvalho. São Paulo: Três, 1973. pp.107-108.

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